quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Aquele beijo




- Você soube do Rudofino?

- Qual? O filho da Rosiléia?

- Isso mesmo. Entrou para o teatro e parece que virou v...

Vejam bem, vamos contar esta história direito. Rudofino, pobre Rudofino, rapazola de mais ou menos 17 anos, filho de costureira e pai desconhecido, acabara de descobrir o mundo das artes, o “mundo do teatro!” para ser mais exata. Queria ser ator, subir ao palco, ouvir aplausos, talvez o nome completo no programa de uma peça...

- E a mãe dele já soube disso?

- Coitada. Que desgosto.

Rudofino passou semanas se preparando para a audição de uma peça e, finalmente, conseguira o seu primeiro papel. O problema é que, além do seu personagem não ter nenhuma fala, Rudofino só entrava em cena uma vez para beijar a boca de um homem. Beijo simples, rápido, quase nada...

- Mas ele beija mesmo?

- Não estou lhe dizendo!

- Assim... na boca?

- Coisa de namorado.

Rudofino não teve muita escolha, afinal aquela seria a sua primeira oportunidade de subir ao palco e ele não fazia idéia de quando surgiria outra. De todos do elenco, Rudofino era o único que não recebia tratamento especial. Alguns mal sabiam o seu nome. Nos ensaios, quando chegava a hora da sua cena, gritavam:

- Chama o rapaz da cena do beijo!

E assim Rudofino ganhara o seu nome artístico “o rapaz da cena do beijo”. Um pouco incomum, para não dizer totalmente estranho, mas fazer o quê?

- Estou cansado! Passo essa cena amanhã – gritava o ator (e protagonista da peça) que dividia com Rudofino a cena do beijo.

Pobre Rudofino acompanhava a todos os ensaios, nem piscava os olhos, aguardava ansioso pelo seu momento de glória, a sua única entrada que, por causa de um simples faniquito de estrela, não aconteceu. Voltou para casa triste, cabisbaixo... Lembrava do ensaio no dia seguinte e dormia bem.



Se existe destino ou não, o de Rufino estava rabiscado nas estrelas. Após a primeira semana da estréia, a peça teve uma repercussão inesperada, ou melhor, a cena do beijo teve uma repercussão inesperada.

- Você já viu aquela peça?

- Qual?

- Aquela! Qual o nome, meu Deus? Esqueci agora. Aquela que tem a...

- Cena do beijo? Já. E como vi!

- Você notou o rapazinho que faz a cena?

- É, parece que ele tem futuro.

Rudofino de “chama o rapaz da cena do beijo” passou a ser a principal atração do espetáculo. O elenco começou a olhar diferente para ele, começaram a notá-lo.

- Essa cena é um absurdo! Eu quero o meu dinheiro de volta!

- Não sou obrigado a ver dois homens se beijando!

Mas essa era uma minoria tão inexpressiva...

- Parabéns, Rudofino – elogiava o colega de cena, aquele que “estava cansado”.

- Obrigado. – agradecia, meio desconcertante, o jovem ator.

De boca em boca, a polêmica “peça da cena do beijo” quase bateu o recorde de público. Até a crítica foi contagiada pelo MAL DO BEIJO, título de uma manchete de um importante jornal. Noutro saiu uma nota que começava mais ou menos assim:

“A peça não tem muito a acrescentar, os atores possuem uma interpretação mediana e blá, blá, blá, entretanto na cena do beijo...”

As pessoas assistiam uma, duas, até três vezes a peça. Antes da cena, aquela inquietação, pigarros, nhec-nhec de cadeiras... Chegava o tão esperado momento, o silêncio da platéia e “smack”. Depois algumas pessoas se retiravam, outras dormiam, enfim, a peça em si não significava muita coisa para elas.

Contudo isso também “não significava muita coisa” nem para o diretor nem para o produtor que viam a bilheteria crescer a cada dia.

- Arte! E por acaso arte mata a fome de alguém? – esbravejava o produtor.

- Mas... e a essência dos demais personagens? – indagava um ator.

- E as demais cenas? – perguntava outro

- Corta. – respondia o diretor cinicamente - As pessoas vêm para ver a cena do beijo e pronto. Além do mais, pra que me preocupar com essência?

- Porque você é o diretor. – irritava-se um ator, aquele que “estava cansado”.

- Há um mês que eu não sei o que é dívida. Tô pensando até em trocar o meu carro e você vem me falar de essência?



Pois é, quando a bilheteria cresce, a arte desaparece. E foi visando aumentar ainda mais os lucros que o diretor teve a brilhante idéia de...

- Como assim aumentar a minha cena, senhor diretor? – perguntava Rudofino ressabiado.

- Meu caro, deixe de falsa modéstia. Você é um sucesso! As pessoas vêm pra ver a sua cena, você. Então, por que não corresponder à expectativa delas?

- E o que o senhor sugere?

- Você será o protagonista. Ficará mais tempo e ganharemos mais dinheiro, quero dizer, mais platéia!

- Mas e o...

- Não tem mas nem menos mas. Está decidido. Você já sabe as falas.

Rudofino não queria tomar o papel do ator que “estava cansado”, mas...

Uma semana após esta conversa, Rudofino estreava no papel principal. No entanto, a receptividade do público foi a pior possível. No terceiro dia de Rudofino como protagonista, o teatro encontrava-se quase vazio.

- Você reparou? Não é mais aquele o rapaz da cena do beijo. É outro.

- Sem graça, né? Aquele dali não vai muito longe não.

“Aquele dali” era, na verdade, o ator que “estava cansado”. Ao contrário do que o diretor pensara, as pessoas não iam para assistir apenas a cena do beijo ou somente Rudofino e sim Rudofino na cena do beijo. O sucesso estava na química entre esses dois elementos, porém o diretor que não via mais a arte, não pode constatar esse fato e, como os demais integrantes do espetáculo, passou a não ver mais a cor do dinheiro. Em duas semanas a peça tornou-se um fracasso total.

- Sem beijo não dá. – lamentava um expectador, retirando –se do teatro.

A peça saiu de cartaz.



(20/09/00)

1 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom .
kkkkk
Amei!!!!
Prima /Aju

22 de fevereiro de 2010 às 08:11

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