Progresso com Torradas
- É a tecnologia!
Tudo havia começado
pela manhã, na hora do café, por causa de uma torradinha que saiu queimada.
Lucila não admitia que no microondas as torradas pudessem sair melhor do que no
forno convencional, era contra esse tipo de “modernidade inútil”, mas Maurino
discordava plenamente, aliás, desde quando “a modernidade poderia ser inútil?”,
pensava ele. E a discussão se estendeu por todo o dia, passando pelo almoço,
entrando tarde a dentro...
- Não posso entender como as pessoas ficam
inertes a invasão dessa tecnologia que só faz complicar, atrasar... E tem mais,
além de muito cara, é, geralmente, em inglês ou japonês, vê-se logo que não foi
feita para todo “o” mundo. Resumindo, a tecnologia é seletiva.
- Deixe de bobagem, mulher, parece discurso
de líder estudantil! Se a tecnologia foi feita para melhorar, facilitar a nossa
vida, como ela pode ser inútil? Quanto ao fato dela não ser para todos...
- Não é mesmo e pronto! – levantou-se para
atender o telefone.
Maurino suspirou e voltou a ler o jornal.
- Oi, mamãe? Tudo bem? Maurino? Está ótimo!
Melhorou, fiz aquele chá... Se bem que ele nem queria tomar, disse que achava
melhor aquele remédio moderno dos Estados Unidos... E Julinha? Manda um beijo
pra ela. Tá, tá bom. Certo.Outro pra senhora.
E quando colocava o
telefone no gancho, foi atacada por uma rajada de perguntas.
- Quem disse que eu não queria tomar o chá? E
que remédio dos Estado Unidos é esse? Aquele remédio é da Inglaterra,
caríssimo, feito nos mais modernos laboratórios de Londres e...
- E que não funcionou nenhuma, pois foi
graças ao chá de mamãe que você conseguiu dormir.
- Tá, Lucila, eu desisto de discutir com
você! Até porque eu não aguento mais escutar esses disparates contra a melhor
virtude da humanidade: a tecnologia.
- Que melhor virtude da humanidade o quê,
Maurino? Agora quem está falando como um
líder de estudantil é você.
- Lucila, quando eu falei da torrada...
- Torrada? Eu já até esqueci da torrada,
Alberto!
- Alberto? – perguntou o marido desconfiado
- Que Alberto? Quem disse Alberto? Eu disse
Mau-ri-no.
- Não foi o meu nome que eu escutei, Lucila.
Quem é esse tal de Alberto? – indagou o marido, alterando a voz.
- Não sei! É tudo por causa dessa tecnologia!
- Não, não é, pois nós já não estávamos mais
discutindo sobre “essa tecnologia” quando você trocou o meu nome.
- Olhe, vamos parar com isso, que eu não
estou gostando...
- Quem não está gostando sou eu! Primeiro
você desfaz da tecnologia, depois me joga contra a sua mãe e, por fim, me chama
de Alberto? Quem é esse tal de Alberto, Lucila?
Percebendo que seria
impossível fazer o marido acreditar numa simples resposta do tipo, “é o
namorado da Julinha”ou “é aquele ator da novela das seis...”, Lucila pensou em
contar a verdade. Já não podia mais enganar o marido, um dia ele iria descobrir
ou alguém contaria para ele e poderia ser muito pior...
- Vamos, Lucila, estou esperando. Responda
logo, nada de ficar procurando uma desculpa farrapo de esfarrapada. Quem é esse
tal de Alberto?
- Eu...eu não sei, pronto! Será que ninguém
pode se enganar e trocar um nome? E se um dia você me chamar de Luzia? Eu vou
brigar com você por causa de um nome? Isso é infantil, não tem cabimento!
- Não tem cabimento é você ficar me enrolando
desse jeito para responder a minha pergunta. Logo você que é tão rápida nas
respostas.
- Sim, mas...
- Vamos, Lucila! É a última vez que te
pergunto – disse aproximando-se da esposa - quem é esse tal de Jorge?
- Jorge? – perguntou Lucila assustada
- Quem disse Jorge? Eu disse Al-ber-to.
- Não, você falou Jorge! Eu ouvi! Não sou
surda e nem tente me fazer de burra.
- E desde quando eu conheço algum Jorge?
Lucila, você está invertendo a situação. Pois eu não vou aceitar isso não. Quem
é esse tal de Alberto? – perguntou Maurino, tentando fugir dos olhos
investigativos de sua mulher.
- Quem está invertendo a situação é você.
Quem é esse tal de Jorge, Maurino?
Os dois estavam
mentindo e tentando se sair da melhor maneira possível, mas chegaram ao ponto
que ou alguém contava a verdade ou o casamento de vinte anos e dois filhos
chegaria ao fim. Já passava das sete horas da noite e a discussão, que começara
no café da manhã por causa da torradinha queimada, continuava firme. E Lucila
sentiu mais uma vez que tinha razão, pois se não fosse aquela “bendita
tecnologia”, seu casamento não estaria em perigo.
Oito, nove, dez
horas da noite, Lucila resolveu se entregar:
- Está bom, Maurino. Você venceu. Eu conto a
verdade. Não sei o que você vai pensar depois disso, talvez você nunca mais
acredite em mim, nas minhas opiniões...E isso é o que mais me dói. Alberto
é...é...
As
palavras se batiam dentro de sua boca, mas nenhuma se atrevia a sair.
-
Sim? É...
E
que Deus (ou a tecnologia) a protegesse, mas Lucila confessou:
- ...é
o nome do meu professor de informática! Pronto, contei! Eu sempre tive vontade
de mexer com computador, lidar com essa tecnologia toda, mas eu tinha vergonha
de assumir isso, então eu preferi atacá-la. Até que resolvi tomar coragem e me
matricular nesse curso de informática. Mas se eu contasse isso a você, estaria
dando o braço a torcer, era o mesmo que aceitar que você estava certo e eu não
admito perder numa discussão, você sabe disso.
- Então quer dizer que todo esse ódio pela
tecnologia era simplesmente para disfarçar a sua tecnológica ignorância? Oh,
meu bem! Na verdade, você é tão a favor dela...
- Quanto você, ou até mais. Entretanto, como
falar de algo que eu não conhecia? Era melhor desprezá-lo do que assumir a
“minha tecnológica ignorância” como você disse. E assim que eu ficasse craque,
eu poderia mudar de idéia sem precisar passar vergonha.
- Lucila, eu não estou pensando nada de você;
até porque o que eu tenho para lhe dizer não é tão simples assim. Talvez você
não venha a acreditar ou mesmo respeitar as minhas opiniões que, você sabe, são
tudo pra mim. Bem, Jorge, ele... ele é...
Pobre
Maurino, parecia sofrer do mesmo mal que Lucila: a dificuldade de assumir a verdade,
sentia na boca as palavras em desordem, sua mente estava a beira de um ataque
de nada, pois nada se formara até aquele exato momento, o momento de...
-
Confesse, Maurino. Ele é...
- Um amigo de longas datas...
- E?
- ... o dono do antiquário e um sebo dos quais eu sou freguês há muito
tempo. Eu nunca fui a favor dessa tecnologia que invade nossa vida sem pedir
licença, sem se identificar ou pelo menos apresentar o CPF. Sempre preferi às
coisas antigas, os filmes, os móveis, as roupas, tudo. Contudo meu trabalho me
obrigou a lidar com ela, a tecnologia. Todos os dias eu era obrigado a
estudá-la a fundo, então, para aceitar melhor essa situação, resolvi criar uma
imagem de homem do futuro, adepto do progresso das máquinas. Além do mais, eu
não poderia dar o braço a torcer ou um dedo que fosse de que você estava certa
já que a minha posição, apesar de não ser verdadeira, era pró-tecnologia.
- Meu Deus, quanta bobagem tecnológica!
- É, bobagem que quase deu um fim ao nosso
casamento.
- Imagina se eu iria deixar que isso
acontecesse.
- Então... vamos esquecer tudo isso e vamos
comer alguma coisa que eu estou morrendo de fome.
- O que poderia ser?
- Quem sabe uma torradinha queimada no micro-ondas?
-perguntou Maurino abraçando a esposa.
- Ai, essa tecnologia... – suspirou Lucila, abraçando
o marido de volta.
E assim passaram o resto da noite: comendo torradas, rindo
da discussão e usando os efeitos tecnológicos da mente para relembrarem os
melhores momentos.
(04/08/02)
(imagem https://mymodernmet.com/toasteroid-app-design/)
1 comentários:
Genial! Mas eu continuo desconfiada do Alberto e do Jorge.
6 de novembro de 2018 às 16:16Postar um comentário