segunda-feira, 15 de março de 2010

ABC do brejo



Em toda a sua vida você deve ter conhecido uma porção de galinhas, não é verdade? De todos os tipos (magra, gorda, branca, de despacho...) e de todos os gostos (cozida, frita, ao molho pardo...), mas com certeza, você nunca viu (e nem sei se terá a oportunidade de fazê-lo) conhecerá uma galinha como Zuzy.

O nome é até engraçado, nome de bichinho de estimação, mas esse não era o caso de Zuzy, se é que ela poderia ser considerada como uma simples galinha. Então você me pergunta “Tá, mas o que é que a diferenciava das demais?”

Bem, Zuzy... Zuzy era uma intelectual, sim, acredite! Ela adorava freqüentar bibliotecas, discutir sobre prosa e verso, globalização, acessar a internet, um verdadeiro fenômeno! Desconheço onde nasceu ou quem foram os seus pais, mas garanto que o seu galinheiro natal e respectivos genitores não farão muita diferença na história de nossa protagonista.

Desde pequena, Zuzy demonstrava um grande interesse pela leitura (aprendeu sozinha), por cálculos, artes, enfim, era inegavelmente a mais inteligente do galinheiro. Todos a consultavam sobre diversos assuntos: história, política, moda, sexo, saúde... e Zuzy atendia a todos com toda a calma do mundo, numa paciência que chegava dar nojo!

Talvez porque seu sonho era ser professora, mais do que aprender, ela adorava ensinar. Pergunte quem alfabetizou todos os galináceos da sua família? Aliás, não só da família, como das redondezas. Vocês sabem, fofoca voa longe, no mundo das penas não poderia ser diferente e logo vieram galinhas, galos e pintinhos de diversas regiões para se alfabetizarem com a “Tia Zuzy”, como ficou conhecida.

Agora, engana-se quem acha que ela era “novidade” só no seu ambiente. A sua fama chegou até a cidade, todos a conheciam (ou pelo menos já tinham ouvido falar) e a respeitavam ao ponto de Zuzy freqüentar diversas rodas intelectuais. Foi convidada para fazer prefácio de livros de autores famosos, chegou até a tomar chá com a galera da Academia de Letras, é mole? Isso sem contar com a constante rotina de entrevistas em rádios e televisões: “O fenômeno das penas” com ficou conhecida. Formou-se na Ganivercidade da CUC (uma extensão da PUC), fez mestrado e doutorado em Harward’s Birds (ganhou bolsa de estudo com direito a milho e tudo), escreveu ensaios, publicou um livro de auto-ajuda, o best-seller “Não vale a pena ter tanta pena”, romances e uma antologia poética muito aclamada pela crítica literária. Aliás, poesia era a sua maior paixão. Seu autor preferido? Galinícius de Moraes com seu inesquecível “Galeto de Fidelidade”. Quando Zuzy o recitava, ela dava um cocoricó na entonação que era de arrepiar as penas!

Certa feita, porém, voltando de um importante encontro com integrantes do MSP (movimento dos sem poleiro) no qual Zuzy havia feito um inflamado discurso sobre o analfabetismo na zona rural, teve uma grande surpresa ao se deparar com um imenso sapo (praticamente o triplo da sua altura) que surgiu do nada, parou na sua frente, impedindo-a de prosseguir o seu galinho, digo, caminho. Ficaram algum tempo se encarando até que ele, num tom ameaçador, perguntou:

- Então você que é Zuzy, a galinha inteligente?

Zuzy, apesar de amedrontada, respondeu secamente:

- Sou sim, o que o senhor deseja?

- Eu...

Mal começou a falar e foi interrompido por Zuzy que deu um repente e continuou:

- Sim, querido, o senhor. E vamos logo que não posso perder tempo, pois ainda tenho uma tradução de Gargínia Woolf para fazer.

- Mas é que...

Ao notar que seu inimigo ficara sem palavras diante da forma como se dirigia a ele, Zuzy respirou fundo e começou a andar até que...

- Ei, Zuzy!

- Doutora Zuzy que eu não te dei intimidade!

- Como é que é? Ei! Aonde você pensa que vai?

- Penso não, meu querido, eu já estou indo!

E dizendo isso, começou a correr e a gritar feito uma louca.

- Meu pai do céu, por que eu filei as aulas de vôo na Ganivercidade? Como é mesmo? Eu bato as asas e tiro o pé do chão? Não! “Tiro o pé do chão” é refrão de axé music, Zuzy! Ai, como é mesmo? Seguro a respiração, conto até três e empurro de vez! Não, sua estúpida, isso é para botar um ovo! Ai, como eu faço?

E foi nessa divagação sobre o “voar ou não voar, eis a questão”, que o sapo deu um imenso pulo e agarrou nossa heroína.

- Mas... mas o... o q...que vo...você quer de mim, anfíbio? – perguntou Zuzy quase sem ar.

- Primeiro que você pare de me xingar!

- Mas anfíbio não é...

- Eu queria a sua ajuda, Zu... digo, doutora Zuzy.

- Só se for ajuda espiritual, meu querido, por que você quase me matou.

E sem ouvir o que Zuzy dizia, o sapo continuou:

- Meu maior sonho é escrever o meu nome e ler as placas dos caminhões que passam pela rodagem, mas eu não posso. Fico imaginando como deve ser bom juntar as letras, ver o mundo além do que ele se mostra para mim e...

- Có! Có! Có! (traduzindo: Há! Há! Há!) E você acha que eu tenho tempo para alfabetizar um sapo? Para quê? Para recitar poesia no brejo? Ora não me faça cacarejar!

Mal terminou de falar, Zuzy percebeu lágrimas nos olhos do sapo.

É, às vezes temos que tomar cuidado com nosso ego, um verdadeiro gigante que quando alimentado é capaz de fazer verdadeiros estragos a nossa volta. E como num passe de mágica, podemos perder família, amigos e até a nós mesmos. E foi justamente esse pensamento que levou Zuzy a uma “interessante” conclusão: naquele momento, por mais sábia que pudesse ser, Zuzy demonstrou-se infinitamente mais estúpida que o sapo analfabeto.

- Desculpe, eu não devia ter falado assim...

- Tudo bem, eu já estou até acostumado. Sapo só beija princesa pra virar príncipe, não é verdade? Me diz, o que mais um sapo gordo e burro como eu pode esperar da vida? A doutora tem razão. Pra que aprender a ler se vou viver afundado num brejo, comendo mosca, engordando ainda mais, até morrer na boca de uma cobra tão estúpida quanto eu.

- Não, por favor, não diga isso! Se existe alguém estúpido nessa história, esse alguém sou eu! Ah, essa mania de me achar a mais inteligente de todos. De que me adiantou tanta leitura, se mal consigo interpretar o mundo que me cerca? De que me adiantou tanto conhecimento, tantas teses se não sei sentir nem amar como um servivo? Não, eu sou uma grande estúpida! Uma grande estúpida!

E começou a se estapear, ou melhor, e começou a se depenar e chorar ao mesmo tempo, deixando o sapo estupefato.

- Calma, doutora...

- Pode me chamar de Zuzy mesmo.

- Calma, Zuzy, se você ficar assim eu vou me sentir um monstro! Se bem que com esse meu corpo, falta pouco pra eu chegar lá.

Ouvindo isso, Zuzy limpou as lágrimas e disse decidida:

- Então está combinado.

- Combinado o quê?

- A partir de hoje, você será o meu discípulo, irá seguir todos os meus passos, irei ensinar a você tudo que sei e aquilo que eu não souber, iremos aprender juntos.

- Mas eu não sou capaz de...

- Nem termine de falar essa heresia.

- Here... o quê?

- Heresia é... Ah, eu explicarei no caminho. Então? Vamos?

- Pra... pra onde?

- Para o “mundo do saber”, meu querido! Os livros nos esperam!

E assim saíram de braços dados, Zuzy explicando para Sapone (quase que esqueço de dizer o nome do sapo) o significado de heresia e de muitas outras palavras.

O tempo foi passando e Sapone aprendia tudo numa rapidez impressionante, a sua sede de conhecimento parecia insaciável. Passado algum tempo, resolveram abrir uma escola: a “ABC do Brejo”, para todos aqueles (sapos ou não) que sonhavam com as páginas do livro, mas tinham medo de folheá-las).

E para quem acha que acabou aí, ele ainda lançou um livro “Amor, o maior saber de todos” no qual fez uma dedicatória muito especial para a sua esposa Zuzy. É, pessoal, se toda história para ter final feliz tem que ter casamento, por que a deles teria que ser diferente? Agora sim eu posso dizer “e foram felizes para sempre”.



THEND



(29/05/03)





origem da imagem:imocanes.com.br

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