sábado, 6 de março de 2010

CONFUSA conjugação AMOROSA


- “Paixão, dor e desespero" é um texto do autor mexicano Rogelio Gelmirez. Atenção: a produção deste espetáculo informa que...

- Pára tudo. Não terá espetáculo nenhum.

- Não estranhem, isso faz parte do espetáculo.

- Não, não faz. Eu realmente cansei deste espetáculo. Em quase todas as minhas apresentações, vocês colocaram um espelho na platéia só para eu pensar que tinha gente. Além do mais, eu não agüento mais ouvir a palavra "espetáculo". Olha, eu não vou e eu não quero me apresentar. Portanto acendam a luz. Acendam, por favor! Obrigada. Eu sei que vocês vieram aqui para ver uma coisa completamente diferente do que eu pretendo fazer agora. Na verdade, eu queria contar uma história. Uma história sem nome, ela não tem título. Aliás, não é bem uma história. É um desabafo. Eu sei que não deveria estar aqui me expondo, afinal de contas, vocês só sabem que eu só uma atriz e pronto. O problema é que eu preciso falar. Eu já fui a psicólogos, terapeutas, gastei milhões e milhões... de palavras é claro, mas não adiantou. Sentia uma vontade louca de me abrir com alguém, com pessoas e não com "mercenários psicológicos". Eu queria que as pessoas me ouvissem por prazer e não por dinheiro, entendem? Bem, eu, há algum tempo atrás, tive uma relação traumática, dessas que marcam a gente para sempre. Eu me envolvi com uma pessoa chamada Eu. Eu e Eu... a gente vivia muito bem. A gente... enfim, vivia muito bem. Só que um dia eu senti que Eu estava muito diferente. Não era aquele Eu de antes. Não aquele Eu que eu conheci, era um outro Eu. Estranhei. Então eu chamei Eu para dialogar, ver o que estava acontecendo. Engraçado, eu nunca me esqueci daquele diálogo entre Eu e eu. Foi um tanto forte...

- Eu, eu queria falar sério.

- Fala.

- Eu estou sentindo uma frieza no nosso relacionamento vinda de sua parte.

- E?

- Foi por isso que eu resolvi te chamar: para tentar descobrir o que está acontecendo.

- Você notou alguma coisa diferente em mim?

- Não meta Mim nessa história que Mim não tem nada a ver com isso.

- Está bem. Quer ouvir o que tenho a dizer?

- Isso. Quero.

- Está bem. Não tenho nada a dizer.

- Como não? Nossa relação vira um sorvete light de creme com passas, tudo muda e eu escuto um "não tenho nada a dizer?” Se está escondendo alguma coisa, fala! Eu agüento! FALA!FALA!

- Posso?

- Desculpa, perdi o meu controle remoto. Fala.

- Está bem. Eu não lhe amo mais. Pronto.

- Nesse momento eu gostaria de apertar o stop, voltar um pouco a cena e apertar o play na esperança de ouvir outra coisa.

- Mas é isso mesmo: eu não te amo mais. Eu só não sabia como te dizer.

- Eu posso ao menos saber quem é o seu novo amor?

- Pode. Estou apaixonado por Você.

- Logo, logo por Você? Se fosse ao menos por Tu, Vós... mas por Você? O que Você tem que eu não tenho?

- Não sei. Eu só sei que agora eu amo Você. Aconteceu.

- Você está ouvindo isso, Nós?

- Com licença.

- É. Nós foi embora, Tu deve estar com Vós e Ela rindo as minhas custas, Eles e Elas então nem se fala. Ele há tempos que não dá as caras e, quando penso que não, Eu me abandona e me abandona logo por Você.

- Peraí. Nós deveríamos...

- Nós não deve nada. Aliás, Nós nem quer saber da gente. Eu, você me traiu.

- Você não te traiu, quem te traiu fui eu, desconte em mim!

- Eu já disse pra você não colocar Mim na história!

- Perdoa?

- Esquece! Aliás, não. Escuta primeiro. A gente termina tudo numa boa, mas antes me escuta.

- Está bem.

- E para de repetir tanto “Está bem”, pois não está nada bem!

- Está bem, eu paro.

- Deixa pra lá.

- Está bem.

- IiiiH! Olha, Eu, você não foi o meu primeiro amor.

- Como não?

- Antes de te conhecer... Na verdade eu sempre amei e nunca consegui esquecer Mim.

- Mim?

- É, Mim. Eu, você é legal e foi por isso que eu entrei de cabeça na relação.

- Então você nunca me amou?

- Na verdade eu achava que amava duas pessoas ao mesmo tempo: Mim e Mesmo. Mas Mesmo era só fogo de palha. Mandei Mesmo tomar banho e ele foi. Mesmo era tão burro... Morreu intoxicado com a espuma de um sabonete líquido. Resumindo, eu sempre amei Mim.

- Legal. Sincera você.

- Não me confunda com esta criatura! E eu, numa dessas besteiras que a gente faz na vida, larguei Mim por tua causa.

- É?

- É. Agora eu já falei o que tinha pra falar. Vou tentar voltar atrás, pedir perdão a Mim e vê se ele me aceita de volta.

- Vem cá: você ama Ele ou Mim?

- Mim, idiota! Desculpa. Acabou. Quem sabe você se acerta com Você e eu com Mim? Depois a gente se encontra num presente do indicativo ou do subjuntivo. Quem sabe no futuro do pretérito?

- Então, tchau.

- Tchau. E Eu se foi. Quanto a Mim... sim, Mim me aceitou de volta. Agora e somente agora eu me sinto mais aliviada. Foi por isso que cancelei minha apresentação. Eu sabia que era isso que eu precisava: pessoas me escutando, assistindo eu contar a minha verdadeira história no lugar que mais amo: o palco. Obrigada a todos e todas. E antes que eu me esqueça, amanhã terá espetáculo. Podem vir.

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