domingo, 15 de agosto de 2010

Latim em latidos



- Será que eu agi certo? Eu deveria... Não! Só se eu...

- Você complica muito as coisas.
- É, mas é que... Droga, perdi meu ônibus!
- Vocês complicam muito a vida. Viver bem é viver simples.
- É, você tem razão. Mas a quem estou dando razão?
- A mim.
- Sim, mas ...
- Quem sou eu? Olhe para mim, eu sou um...
- Cachorro????? Estou falando com um cachorro?
- Você deve estar se perguntando “como” se explica o fato de estar conversando com um representante da minha espécie. Isso é bem típico de vocês: se julgam superior e, conseqüentemente, no direito de agir como bem entenderem, seja destruindo florestas, matando animais...
- Um cachorro ecologista.
- Ecologista não. Vocês que inventaram esse nome para aqueles que se preocupam com a natureza.
- Iiiih! Daqui a pouco vai querer se candidatar.
- Estamos conversando há alguns minutos e ainda não movi uma ruga na minha face. Você, no entanto, já fez mais de mil caretas de preocupação, de raiva... Daqui a pouco vai querer gastar uma fortuna com plástica ou vai viver frustrada pelo resto da vida.
- Você fala isso por que só vive no máximo 16 anos. Nessa idade não se tem nem ruga de expressão.
- Mas saiba você que meus 16 anos, segundo alguns dos seus cientistas, valem quase 100. E se for para viver 100 anos nessa vida que vocês levam, bem, com certeza é melhor viver só 16.
- É hoje que eu chego atrasada.
- E pra quê inventaram o relógio?
- Atrasada, praticamente demitida e discutindo sobre a vida com um cachorro!
- Você acha que a gente só sabe balançar o rabo de alegria e fazer xixi no tapete? É assim que vocês resumem a nossa existência? Eu balanço o rabo porque eu quero. Eu posso estar triste e querer balançar o rabo. Que mania de querer definir a gente!
- Não é mania. Nós estudamos antes de chegar a uma conclusão sobre qualquer coisa, sabia?
- E quem organiza esses estudos? Quem ensina vocês? Quem escreve os livros?
- Nós.
- Nós quem?
- Ora, os humanos!
- Hum, que conveniente.
- Eu não entendi.
- Tanta necessidade de saber sobre tudo e para quê? Vivem estressados, doentes, se matando... Garanto que um cachorro de cem anos atrás teve a mesma vida que tenho hoje. Só não posso dizer o mesmo das nossas futuras gerações, cada vez mais longe da nossa verdadeira origem e limitados a função de “alegrar o seu lar”, comendo da sua comida enlatada, sedentários... Muitos dos nossos já têm as mesmas doenças que vocês.
- Pôxa, é verdade.
- E ainda me chamam de animal irracional?
- Não, você não é irracional. Você está me fazendo raciocinar além do que estou acostumada a fazer no dia a dia.
- Irracionais ou não, sabemos viver sem complicação. Viver bem é viver simples.
- É, gostei! Viver bem é viver simples.
- E acho bom você dar uma olhada ali porque o seu ônibus está chegando.
- E você...

O cachorro já estava atravessando a rua. Ao entrar no ônibus, vi gente isolada por fones de ouvido e livros, sem se olharem, no máximo um empurrão para passar. Sempre correndo, sempre atrás de algo...

Hoje, toda vez que vejo um cão, penso em me aproximar e discutir sobre a vida. Quem sabe um dia eu não tenha a mesma coragem do meu amigo que falou o que pensava mesmo sabendo que poderia ser ignorado? Pois o próximo quatro patas não me escapa. Tenho muito para falar sobre Marx, educação...


                                                                                                               
                                                                                                                                  


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