quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O autor


 


Ao abrir a porta sabia que o destino de sua vítima estava em suas mãos. Aquele era o momen...


Din-don!


- Mas será o benedito? À uma hora dessas? Quem...

E Arnalbio levantou enfurecido. Tinha que entregar o material pronto até sexta-feira e já era quarta. Os dois meses de prazo para concluir o seu livro de contos já estavam no fim e era mais do que certo que o seu editor, com aquela mania de pontualidade britânica, não lhe daria um minuto a mais. Ligava todos os dias para saber das histórias e Arnalbio, por sua vez, mentia dizendo que já estava concluindo a penúltima, quando na verdade não havia terminado nem a primeira.

- Uma maldição!

Desde que o seu primeiro livro fora publicado e se tornado um sucesso, rendendo-lhe vários prêmios, Arnalbio não conseguia escrever mais nada, nem uma redação escolar, nem um micro conto de 30 letras lhe vinha à mente. O que houve com a sua inspiração? Sua veia literária? O seu lado obscuro para trazer a tona os contos de assassinatos misteriosos? Agatha Christie havia lhe abandonado. Relera todos os livros dezenas de vezes na esperança de obter algo que eclodisse na sua mente e nada. Em todos os seus 15 anos como escritor, nunca havia se encontrado tão desesperado como naquele momento. Quase agrediu um colega de bar que, ouvindo Arnalbio falar de sua esterilidade literária após o sucesso do livro, resolveu repetir o ditado de que um raio nunca cai num mesmo lugar...

- Será? Não! Não e não mesmo! Isso é ditado popular! Eu sou um intelectual, não acredito nessas coisas.

Em vão tentava se convencer de que não sofria de nenhuma influência da sabedoria popular. Na verdade, não era uma questão de querer, era uma questão de poder. Ele não podia nem pensar na possibilidade do raio cair apenas uma vez. Era o seu ganha-pão que estava em jogo, mais do que isso, o seu ego, a sua vaidade, a sua vida, o seu prestígio...

- Não! Nem que eu tenha que falar com Santa Bárbara, mas esse raio vai ter que cair duas vezes no mesmo lugar sim!

E foi envolto por esses pensamentos que Arnalbio ajeitou um pouco o cabelo (que já não via um pente há três dias) e abriu a porta para ver a cara do imbecil que interrompera o seu momento sagrado.

- Bom dia, amigo.

Arnalbio não abriu a boca.

- Eu sou o seu novo vizinho. Do 302.

Arnalbio não demonstrou nenhuma reação. Parecia uma estátua encarando o pobre homem de um metro e meio, óculos com aro de tartaruga e mãos trêmulas. Odiava cada parte daquele ser que ousara interromper o seu momento sagrado.

- Eu vim aqui saber se o senhor teria uma tesoura para me emprestar. Acho que perdi a minha nessa mudança toda e ainda tem um monte de coisa para...

- Não!

- Como?

- Não tenho nenhuma tesoura. Eu odeio tesouras!

- Mesmo assim, muito obriga...


Blam!


Arnalbio fechou a porta antes mesmo que o pobre homem pudesse terminar.

- Tesoura! A minha inspiração cortada por causa de uma tesoura! Ora bolas, cortada por uma... TESOURA!

Como se um raio houvesse caído sobre sua cabeça, Arnalbio gritou e correu na direção do quarto. Não tinha dúvida, fora atingido pelo tão esperado segundo raio. Jogou-se sobre a cadeira e passou a escrever como um louco. Estava alucinado, surdo, esquecera de respirar, os olhos haviam se congelado sobre a tela do computador. Santa Bárbara havia lhe escutado, sua inspiração estava de volta. Sentiu o calor subindo pelos dedos das mãos, o suor descendo pelas costas, tudo como antes. O senhor editor que o aguardasse, pois estava com inspiração para uma coletânea.


Ao abrir a porta sabia que o destino de sua vítima estava em suas mãos. Não tinha tempo a perder. Aquele era o momento. Tinha em suas mãos a tesoura que usou para...



Din-don!



O que era aquilo? Uma onomatopéia imaginária? Ou realmente ouvira o que ouvira? Seria a polícia chegando à casa do assassino de sua história?


Din-don!


- Maldição! Inferno! Para o diabo com o seu din-don!

E continuou atropelando as letras do teclado com os seus dedos incontrolados. Estava fora de si e o assassino do seu personagem, sem saída.


Din-don!


- Eu preciso de uma tesoura! Onde está a minha tesoura? Entrego logo a porcaria da tesoura para esse imbecil me deixar em paz!

E começou a abrir todas as gavetas da escrivaninha em busca da “bendita” tesoura.

- Onde está a danada?

E começou a revirar tudo a sua volta. O desejo de continuar a história era tão grande que, caso não achasse a “bendita” tesoura, seria capaz de ele mesmo abrir no dente todas as caixas do seu vizinho só para ter a certeza de que não seria incomodado novamente.


Din-don!


Não achou a tesoura. Dirigiu-se aporta e...

- Desculpa incomodar novamente, vizinho, mas você tem certeza que não tem nenhuma tesourinha por aí perdida? Numa gaveta? É que as caixas foram tão bem embaladas...

Arnalbio sentia o corpo pingando de suor e aquele era o sinal de que a sua inspiração estava no auge. Tinha que voltar para o computador imediatamente. Respondeu um inaudível “Não!” e voltou correndo para o quarto.

- Olá! Vizinhooo! Achou a tesoura? Talvez em alguma gaveta...

Arnalbio esquecera de fechar a porta e ali estava o seu novo vizinho, no meio da sala, chamando por ele e perguntando pela "bendita" tesoura.

- Como este imbecil se atreve a invadir a privacidade de Arnalbio Corrêa, autor de um dos livros mais vendidos do ano?

- Oi, vizinho, você deixou a porta aberta. Isso é perigoso nos dias de hoje, sabia? Dia desses...

- Não!

- Como?

- Não está em nenhuma gaveta. Eu odeio gavetas!

Arnalbio encarava o pequeno homem com um ódio indescritível, seria ele o preço pelo retorno da sua inspiração?

- Então terei que...

E o pequeno homem começou a dirigir-se até a porta. Arnalbio o acompanhou para ter certeza de que iria embora de vez. Voltou para o quarto. Já não estava soando tanto como antes, mas ainda sentia a febre dos dedos.

Ao abrir a porta sabia que o destino de sua vitima estava em suas mãos. Não tinha tempo a perder. Aquele era o momento. Tinha em suas mãos a tesoura que usou para...

Alongou-se e ao virar o pescoço para o lado, lá estava ela: a tesoura. Usara a “bendita” na noite anterior para recortar uma critica que havia saído no “Informe da manhã”. Bem, já não precisava mais dela. Alongou a coluna mais uma vez e voltou a escrever. O assassino iria fazer a sua última vítima antes de ser preso pelo detetive Ludsor. Entretanto, Arnalbio, após aquele abre e fecha de porta, não conseguia mais visualizar a morte final. Sabia que deveria ser a mais bela de todas, com requintes dignos de um serial killer.


Din-don


Levantou-se e foi até a sala. Ao abrir a porta sabia que o destino de sua vítima estava em suas mãos. Não tinha tempo a perder. Aquele era o momento. Tinha em suas mãos a tesoura que usou para cortar o jornal na noite anterior.

- Olá de novo, vizinho. Por acaso você não teria uma faca de serra para...

- Não!

E deu o primeiro golpe. O homem segurou a mão de Arnalbio antes de cair.

- Não! Não! E não!

E deu os golpes seguintes. Tudo presenciado por dona Malva e sua empregada que acabavam de chegar do supermercado e encontravam-se imóveis diante do elevador.

- É o meu fim! É o meu fim!

Berrou Arnalbio olhando para as duas mulheres que começaram a gritar e correr escada abaixo. Sim, era o fim de Arnalbio. O fim que ele tanto queria para a sua história. Sabia que a polícia chegaria em alguns minutos, tempo suficiente para concluir o último parágrafo.









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