domingo, 8 de agosto de 2010

Profissão?


- Profissão?

- Leitora.

A mulher olhou para a minha cara como se eu a tivesse insultado.

- Senhora, eu perguntei a sua...

- Profissão. Pois é, leitora.

Seus olhos me perguntaram “E desde quando isso é profissão?”, mas a sua atitude profissional só permitia que ela continuasse a preencher o formulário, deixando em branco o espaço destinado a profissão. Nada de polêmicas, concordando ou não, o cliente tinha que ter sempre razão.

Foi por essas e outras que optei por ser leitora, uma profissão livre, podia concordar e discordar daquilo que bem entendesse. Entretanto, nem todos tinham a mesma sorte (ou coragem) que eu.

Ela me entregou os documentos e mandou aguardar. Talvez o único momento em que pudesse dar uma ordem a alguém.

E assim a polêmica da minha profissão se repetia todas as vezes que eu era perguntada sobre ela. Viver de quê? Ganhar o quê? E desde quando letras pagam as contas? Perguntas pessoais que eu me recusava a responder, deixando o meu interlocutor mais intrigado do que nunca.

Sim, eu era leitora e pagava as minhas contas. Ganhava e muito. Muito mais do que um salário no fim do mês, aliás, o que eu ganhava nunca acabava, durava o quanto eu quisesse. Por que tantas perguntas e surpresas sobre uma profissão? Não poderia dizer que era uma profissão como outra qualquer, mas ainda assim era uma profissão, era a minha profissão. Que me perdoassem os médicos, advogados e todos aqueles com profissão reconhecida que se incomodavam com a minha.

- Profissão?

E lá estava eu outra vez, no centro da berlinda. E seria assim para sempre, até o fim dos meus dias, todas as vezes que eu abrisse a minha boca para dizer “Leitora”.

- Senhora, eu pergun...

- Sim, leitora.

Mais uma que era dominada pela formalidade profissional: se calava e deixava em branco o espaço da profissão.



 




(08/08/2010)














origem da imagem:http://oimperativocategorico.files.wordpress.com/2008/04/preferencia_para_leitores.jpg

1 comentários:

Viviane Lopes disse...

Uau! Identifiquei-me muito com o texto!

20 de janeiro de 2020 às 18:27

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