sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Dona Sinhá

vovó morreu
e desde então choro
como se fosse hoje
como se todo dia fosse o seu enterro

no seu enterro,
não pude chorar
consolei quem chorou
imaginei que eles podiam
eu não

só consolei os filhos
que vieram primeiro
e eram mais velhos, mais frágeis
dentre eles, minha mãe

achei injustiça com vovó
mas acho que ela entende
(ou entenderia)
agi como a mãe de seus filhos
protegendo-os, consolando-os

um grito do telefone
MORREU!
e este mesmo grito eu passei
pelo mesmo telefone
à uma colega de trabalho
MORREU!
ela ligou desprevenida do acontecido
assim como eu
quando liguei para titia
VOVÓ MORREU!
e abafei o choro

os filhos dela, mais velhos, mais frágeis
eu tinha que consolar
tomara que vovó me perdoe
não me perdoo até hoje
e choro
choro todo dia como se fosse hoje
o enterro de vovó que eu não pude chorar

consolei
fui mãe da minha própria mãe
que acabara de perder a sua
e fui mãe dos seus irmãos
todos mais velhos, mais frágeis

um choro abafado, pra dentro
cresceu dentro de mim
e a cada dia sai um pouco
(às vezes um pouquinho)
até quando? não sei

e choro tudo o que posso
basta ouvir, lembrar ou ver algo de vovó

será que ela me perdoa?
preciso me perdoar
como?
chorando até expulsar a última lágrima
o derradeiro soluço

vovó vai virar imagem boa
memória gostosa
bolo e galinha ensopada
suas histórias

perdão, vovó
perdão por não chorar como deveria
você não gostava que a gente chorasse
disfarçava
mandava olhar uma flor bonita

um dia tudo isso se aquieta, vó
e não choro mais
só lembro
sinto saudade

e conto suas histórias
para aqueles que um dia
não abafarão o choro no meu enterro
contarei suas histórias
para aqueles que um dia
serão meus netos


(28/10/10)

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