quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Vi (os bastidores do poema)


Ainda na faculdade de letras, a professora Lícia Beltrão pediu um trabalho no qual pudéssemos falar de um escritor.
Uma colega trouxe a sugestão "Ferreira Gullar". A professora num suspiro, colocou a mão no peito e disse "Não poderia ser melhor".
E assim iniciamos, uma colega e eu (não sei se ela gostaria de ver o seu nome publicado) uma viagem ao centro da terra Gullarística.
Poesia, fotos, biografias... Escrevi poemas dele e para ele. Até um poema só com os títulos de seus poemas. Antropofagicamente falando, comemos e digerimos Ferreira Gullar.
Quase um mês depois, o resultado: um livro enorme, capa dura e com a foto enigmática da Esfinge Gullar.

Apresentamos o trabalho e deixamos a emoção colorir tudo o quê recitamos e coreografamos, afinal, o corpo também quis falar de Gullar.

Algum tempo passou, eu de férias no Rio, uma peça baseada na obra de Ferreira Gullar estava em cartaz. Vergonha, eu sei., mas não lembro o nome. Conheci uma pessoa íntima do pessoal da produção da peça.
Pedi o contato e expliquei a minha história: havia levado o grande livro (a bíblia gullar) comigo para o Rio e queria entregar a ele em mãos.
Quanta audácia a minha, mas sonho é sonho e não é que deu certo? O rapaz me deu um telefone. Imaginei ser do escritório do Ferreira, que eu teria que marcar uma hora ou entregar para alguém que pudesse entregar para ele...

Liguei. Uma voz rouca atendeu.
- Alô?
- Alô?
- Eu poderia falar com o Ferreira Gullar?
- Quem deseja falar com ele?
E expliquei toda a minha história, desde o trabalho na faculdade até o sonho de entregar ao próprio Ferreira o  livro. Assim que terminei...
- É ele mesmo que está falando.
- Oh, Ferreira, assim você me mata do coração! Eu queria falar com você, mas não esperava falar com você.
Ele riu. E marquei de levar o livro no apartamento dele.

Era um apartamento de escritor, não tenho outra definição. Livros, jornais, papel e um gato. Aliás, o gato cuja foto eu tinha visto algumas vezes durante a minha pesquisa. O bichano estava lá e olhava a tudo com aquela invejável indiferença dos gatos.

Antes do gato, bem, teve toda aquela coisa de interfone e a voz dele dizendo "Pode subir". Acho que o meu coração já tinha subido muito antes da permissão ser concedida. Fui com minha mãe, a companheira de sempre. Diante da porta, ouvi o barulho e depois, Ferreira Gullar. Magro, um sorriso nos lábios, seus lisos cabelos grisalhos, uma roupa de casa, chinelos talvez, não me lembro, e fui convidada a entrar.

Tão surreal quanto um quadro de Dali era a minha imagem no centro da sala de Ferreira Gullar. E lá estava o gato. O poeta, na sua simplicidade dos grandes que sabem que são gtrandes, recebeu o livro da desconhecida estudante de letras como a quem recebe um prêmio. Sem grandes celebrações, mas uma discreta felicidade diante daquela obra não-autorizada.

 Que orgulho passar para suas mãos o trabalho que valeu muito mais do que qualquer monografia ou tese para mestrado. De mestre, só ele mesmo.

Fotos com ele, fotos com o gato, fotos com ele e o gato. Ele atendeu a todos os pedidos com simpatia, calma, uma paz interior daquelas que eu levaria algum tempo de terapia para atingir (eu e a torcida do flamengo, é claro).

Recebi dele um exemplar autografado (na hora) de Poema Sujo. Ao sair, não me contive e chorei em versos tudo o que vi com o poema "Vi" para falar da história de um nordestino ilustre na cidade maravilhosa e  uma ilustre desconhecida tendo o seu momento ilustre com o já ilustre poeta da atualidade, Prêmio Camões 2010 e 2011,2012,3010, 3011...

Ainda há muito o que Gullar, seu Ferreira!

0 comentários:

Postar um comentário