segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Inocentes Sapatos Azuis


- Ah, esses sapatos azuis... - suspirava Pedro em frente à sapataria.

Todos os dias, antes de ir para o trabalho, Pedro parava diante da vitrine só para ficar admirando o sapato dos seus sonhos. O namoro tinha começado há alguns meses, logo que os sapatos chegaram à loja.

Já fazia parte da rotina de Pedro. Era como se todo dia ele tivesse que visitar um ente querido no hospital. Os vendedores da loja comentavam:
- Coitado, não tem dinheiro pra comprar os sapatos dos seus sonhos...
- Coitado nada. Ou ele é doido ou não tem o que fazer. Fica um tempão olhando os sapatos pela vitrine e nunca nem os experimentou.
- Daqui a pouco ele vai começar a espantar a freguesia.

Ninguém entendia o amor platônico que Pedro sentia por aqueles sapatos. Realmente, ele nunca os havia experimentado, mas não por falta de oportunidade, isso é que não. Talvez, para não perder o mistério, quebrar o encanto... Só quem ama entende essas coisas.

E não demorou muito tempo para Pedro virar o assunto principal do bairro:
- Você notou que o Pedro só anda de azul?
- Acho que é pra combinar com os sapatos.
- Por que ele não pinta os sapatos dele de azul?
- Porque ele vai ter que ficar o tempo todo olhando pra baixo.

Mas Pedro parecia não se incomodar com esses tipos de comentário. Para ele nada mais interessava: apenas o par de sapatos azuis. E todo dia, no mesmo horário, lá estava Pedro.

 O curioso é que, de repente, as vendas na loja de sapatos começaram a crescer. Todo mundo queria comprar na loja do “Pedro Vitrine”, como passou a ser chamado. Um dia, um freguês se atreveu a perguntar pelo preço dos sapatos azuis, pois estava pensando em levá-los...
- Não, senhor - bradou o gerente - estes sapatos são do Pedro Vitrine. O senhor pode levar qualquer outro par, menos esse.

As crianças passavam na rua e apontavam para Pedro como se ele fosse um super-herói.
- Olha lá, mamãe! Olha lá o Pedro Vitrine! Quando eu crescer, eu vou ser igual a ele.

Os adultos que no início viviam criticando e, às vezes, zombando de Pedro, agora admiravam o seu sentimento puro pelo par de sapatos, uma fidelidade eterna sem exigir nada em troca.

Pedro que, a essas alturas, já era notícia de jornal, também se tornara o modelo de homem ideal. Muitas pessoas  declaravam abertamente que gostariam de ter um namorado ou um marido igual ao Pedro:
- Ah, se meu namorado fosse tão apaixonado por mim como o Pedro é por aqueles sapatos...
- Ah, se o meu marido fosse tão fiel como o Pedro...
- Eu adoraria que o meu noivo tivesse a mesma pontualidade do Pedro...

Modelo de homem ideal, notícia de jornal, ídolo das crianças, nada disso abalava a rotina de Pedro que era de casa para loja, da loja para o trabalho e do trabalho para loja. Nos finais de semana, ficava o dia inteiro em frente à loja fechada. Não importava o quanto tivesse que esperar, queria ser o primeiro a ver os sapatos quando a loja abrisse.

Pedro chegou do trabalho cego de desejo para ver seu grande amor, não via mais nada, somente  a loja de sapatos do outro lado da calçada...

Foi atropelado por um caminhão azul. Morreu na hora. Dizem algumas testemunhas que suas últimas palavras foram “Ai, aqueles sapatos azuis”.

A morte de Pedro foi um grande choque para todos:
- O Pedro? Aquele dos sapatos azuis?
- Ele mesmo. Morreu atropelado em frente à loja.
- Ai, coitado, morreu sem realizar o seu sonho.
- Como eu vou contar isso para o meu filho?

E assim a notícia se espalhou rápido. Saiu até nos jornais. Cada manchete mais sensacionalista que a outra: “MORRE O POBRE PEDRO DOS SAPATOS AZUIS”, dizia uma.Na outra: “SEM SAPATOS SE FOI O POBRE PEDRO VITRINE”.

A consternação foi tão grande que a loja resolveu não abrir no dia do funeral de Pedro que foi digno de uma grande personalidade. Milhares de pessoas (muitas que nem chegaram a conhecê-lo pessoalmente), câmeras de TV, autoridades políticas... Foi um dos eventos do ano.

Na missa de sétimo dia, que já não foi tão badalada quanto o funeral, veio a bomba: Pedro fora assassinado.

- Mas como? O caminhoneiro não teve culpa.
- Mas o culpado não é o caminhoneiro. O par de sapatos azuis é o verdadeiro assassino.
- Ooooooh!- admiravam–se todos

E, acreditem ou não, após um mês da morte de Pedro, o par de sapatos azuis foi levado a julgamento para decidir qual seria o seu fim. No tribunal, foi colocado no banco dos réus e...

- Está aberta a sessão! Com a palavra, o promotor.

O promotor, um homem de mais ou menos quarenta anos, tinha a fama de nunca ter perdido um caso. Trajava neste dia, por ironia do destino, um suntuoso terno de cor azul.

- Senhoras, senhores, temos aqui, diante de nossos olhos, o caso de Pedro. Um homem simples e na vida cometeu um único erro: admirar estes sapatos. Um simples par de sapatos? Não. Mal sabia o pobre Pedro que estava admirando os seus futuros assassinos! De uma maneira fria, calculista e aproveitando-se de sua boa aparência, os sapatos seduziram a vítima, sugando todo o seu discernimento, anulando a sua vida social, enfim, transformando-o num indivíduo inerte, sem luz própria. E tudo isso para quê? Apenas para satisfazerem a sua vaidade, de serem admirados como os sapatos mais belos do mundo. Não lhe deram a mínima chance de defesa. A cada dia se tornavam mais e mais atraentes, hipnotizando-o para no fim matá-lo! CULPADOS! ELES SÃO CULPADOS! - alterou-se o promotor, causando um imenso tumulto entre os presentes.

- SILÊNCIO! - gritava o juiz – SILÊNCIO NO TRIBUNAL! ORDEM! ORDEM!

Após alguns gritos e marteladas, a situação foi controlada.



- Com a palavra, o advogado de defesa. – anunciou o juiz, secando o suor da testa.



Era um rapazola de vinte e poucos anos, que acabara de sair da faculdade. Advogado por profissão e poeta por convicção, vejam a sua defesa:
- Serei bem simples e claro para que todos possam  entender o que realmente está acontecendo aqui. Estes sapatos, considerados assassinos perigosos, não passam de protagonistas de uma bela história de amor. Não esse amor que presenciamos no nosso dia a dia, na casa do vizinho ou nas telas de cinema, não. O amor ao qual eu me refiro aqui é muito maior, muito mais forte, muito mais verdadeiro e, por isso, muito mais raro. Pedro, desde o dia em que conheceu este par de sapatos, não “anulou sua vida social”, como citou há pouco o meu caro colega de acusação. Pedro apenas anulou uma parte da sua vida que não lhe preenchia. Ele não deixou de viver por causa do amor, na verdade, ele viveu por amor, viveu para amar estes sapatos como nunca amaria ou seria amado por ninguém. O único crime que estes sapatos cometeram, senhores jurados, foi se tornarem a causa desse sentimento. Portanto, nós seremos os assassinos desta história se condenarmos estes pobres sapatos azuis ao terror de um cárcere! - concluiu o jovem advogado.



Antes mesmo de receber o veredicto, o juiz, numa atitude pouco convencional, declamou em alto e bom tom a seguinte sentença:
- Após a defesa aqui ouvida, eu, como autoridade máxima desse tribunal, declaro este par de sapatos azuis inocente!



- DROGA! – explodiu o promotor de terno azul, que aproveitou o momento do tumulto para sair despercebido.



Dentre aplausos e “vivas” que ecoaram por toda a sala, lágrimas dos presentes. A magia do amor parecia ter contagiado a todos. Os sapatos, por decisão unânime, foram colocados em cima do túmulo de Pedro. Na lápide, a seguinte frase: “Aqui jaz Pedro, o homem que mais amou”.



Tempos depois, alguém acrescentou “Aqui jaz Pedro, o homem que mais amou estes inocentes sapatos azuis".





(09/09/00)






1 comentários:

Anônimo disse...

Eu amno este conto

12 de janeiro de 2010 às 07:13

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