domingo, 10 de janeiro de 2010

A menina do quadro



Vivia uma vida adulta infeliz. Não gostava do mundo dos “crescidos” onde ter problemas era uma característica fundamental para fazer parte deste.

Os problemas eram diversos: no trabalho, no relacionamento, com a família, com os amigos (e também com os problemas destes). Uma infinidade sem solução. Quanto mais os tinha, mais “crescida” se tornava. Estava cansada de tudo, mas não tinha coragem de dizer o que sentia, de gritar ao mundo que estava farta dele.

Aliás, outra característica do mundo dos “crescidos”: para conviverem bem com os demais, têm que abrir mão de tudo (ou quase tudo) que pensam ou sentem, enfim, abrir mão de si mesmo. Cria-se uma máscara e a coloca todos os dias ao levantar-se, antes mesmo de ir ao banheiro lavar o rosto e se olhar no espelho. E assim, ao sair de casa,  passam aquela imagem de uma pessoa normal, talvez feliz. Se alguém se atrever a sair de casa sem a sua máscara, será considerado louco, anormal e por isso deve ser mantido longe dos demais.

A pessoa que se entrega ao uso da máscara, aos poucos, vai perdendo a sua essência e passa toda uma vida sem saber quem realmente é, tornando-se um ser que vive sempre de acordo com as regras do mundo, mesmo que discorde de todas elas. É o chamado “viver em sociedade”.

Depois de certo tempo, a pessoa já não sabe mais como viver de outro modo, ou seja, necessita da aprovação do mundo para fazer qualquer coisa, até mesmo para “ser feliz”.

Estava farta de tudo isso e lembrava com saudade da sua infância, de quando não precisava usar máscaras, de quando era permitido fazer e sentir tudo que quisesse, quando ainda tinha uma essência...

Toda a noite, antes de dormir, mirava o retrato dos seus quatro anos de idade e assim permanecia até que o sono chegasse. Não sonhava, ou pelo menos, não se lembrava de nada. Talvez com a perda da essência, havia também perdido a capacidade de sonhar. Como sentia falta da época em que se considerava uma pessoa de verdade e feliz.

E o que significava “ser feliz”? Não sabia. No seu mundo real não havia nada que se assemelhasse a algo que pudesse ser considerado felicidade, apenas as memórias de sua infância.

E toda a noite fazia a mesma coisa: deitava na cama, olhando o quadro, invejava a felicidade que já não conhecia e apreciava o retrato como se este fosse sua única esperança de não morrer sem poder dizer que havia sido feliz.

Dias, meses, alguns anos... O quadro havia se tornado uma obsessão.

Começou a viver seus dias de máscara com a certeza de que, no final da noite, poderia arrancá-la e aproveitar o único momento o qual considerava o seu ideal de felicidade: usar os minutos que antecediam o seu sono para olhar o quadro dos seus quatro anos.

Era uma manhã nublada e fria. Acordou com os sons que vinham da rua. Não eram os mesmos aos quais estava acostumada, mas lhe pareciam familiares e, ao mesmo tempo, muito diferentes daqueles que ouvia todos os dias.

Não conseguia acreditar. Olhou para o quadro e viu a menina de quatro anos usando uma máscara de adulta, estava usando a sua máscara, era a sua imagem que ela via no quadro. A menina havia perdido o seu olhar angelical, seus olhos demonstravam certo pavor, uma mistura de medo e desespero, uma aura de ansiedade pairava no ar...

Pensou estar sonhando, mas nunca sonhava, ou, pelo menos, nunca se lembrava de nada. Aquilo era real. Correu até o banheiro, suava frio, coração batendo acelerado, um medo de morrer, o pânico começava a dominar suas emoções, já não controlava os seus pensamentos. Parou diante do espelho e gritou.

Não conseguia ver a sua imagem, apenas o rosto da menina de quatro anos, mas seu olhar era de desespero. Lembrou-se da vez que havia se perdido de sua mãe num shopping. Sentia o mesmo pavor, suava frio e chorava até que alguém, um anjo talvez, segurou sua mão e a levou até um balcão onde uma moça com voz rouca chamou o nome de sua mãe pelo microfone. Alguns minutos depois, quase uma eternidade para uma criança perdida, sua mãe chegou e lhe abraçou tanto que quase lhe faltava o ar.

Acalmou-se e sua respiração começou a voltar ao normal. Era uma menina agora. Podia respirar livremente, pois não havia mais nenhuma máscara que lhe sufocasse. E começou a sorrir e o fato de que o seu corpo de mulher era agora o de uma menina de quatro anos já não lhe chocava mais. Sonho? Milagre? Não se empenhou em descobrir, mas em desfrutar daquele momento que tanto desejou durante anos de sua outra vida.

Não era o seu apartamento. A mobília, os quadros de flores nas paredes, o cheiro vindo da cozinha, o barulho da panela de pressão... Não, realmente não era o seu moderno apartamento de cozinha americana com cheiro de nada.

Escutou a voz de sua mãe que a chamava para almoçar. Sua mãe aparentava muito mais jovem. Na televisão, estava passando os desenhos animados de que tanto gostava. Não poderia ser sonho, tudo era muito real. Começou a correr pela casa e a gargalhar histericamente para a estranheza de sua mãe. Estava num mundo sem problemas e ali poderia ser ela mesma, sem se importar com o que o mundo iria dizer ou pensar. Não havia regras, apenas brincadeiras e sorrisos. À noite, sentava na cama para falar com Deus e contar-lhe tudo o que fez durante o dia. Deus a escutava, mas ficava em silêncio. Ela acreditava que Ele não dizia nada porque deveria ter adormecido enquanto ela falava sem parar. Pensava em Deus como um velhinho de mil e tantos anos, por isso já devia estar muito cansado para um conversa tão longa. Entretanto, ela não se importava, sentia que Ele a escutava mesmo dormindo e isso já era o suficiente. Tinha um amigo, um confidente, talvez o único que soubesse do seu segredo.

Não tinha nenhuma noção de tempo, de data, de ano, de nada. Só sabia quando era dia ou noite. Não queria preocupar-se com nada, nem com o tempo, apenas brincar, ver desenho animado e sorrir.

Passaram-se alguns meses, talvez anos... E a menina feliz começou a se entediar com a vida de criança. Já não sabia com o que brincar e já não via mais tanta graça em tudo. Sorrir de quê? A felicidade estava se tornando um tédio, sentia falta da vida de adulta, do mundo dos “crescidos”, mesmo que isso lhe custasse usar a máscara novamente.

Na verdade, o que queria mesmo era a junção das duas vidas para que pudesse ter passagem livre entre os dois mundos e refugiar-se em um quando se entediasse do outro. No fundo sabia que isso não era possível. Teria que escolher um mundo apenas.

E por alguns dias, pensou, pensou muito e resolveu pedir a Deus que a ajudasse a decidir. Entretanto, Deus não lhe respondeu. Quiçá ainda estava dormindo ou muito ocupado com os milhares de problemas do mundo dos “crescidos”.

A felicidade a que tanto desejara agora a entediava, contudo tinha medo de perdê-la. Enfim, tomara uma decisão. Toda a noite, antes de dormir, olhava para o quadro e se imaginava vivendo em seu mundo adulto. Por muitas e muitas noites, deitava na cama observando o quadro. Levanta-se logo cedo, corria para o espelho do banheiro e percebia que nada havia mudado. A imagem do espelho era a mesma: a menina do quadro, bochechuda e com cabelos cacheados. No entanto o olhar... O olhar de desespero, o mesmo de quando havia se perdido de sua mãe no shopping...

Tinha a mesma sensação de angústia e medo de estar perdida para sempre naquele mundo que já não lhe pertencia mais. Chorou, chorou até que caiu adormecida no chão do banheiro.

Despertou com um ruído incessante, uma música que não parava de tocar e se repetia e se repetia... Levantou-se e foi até o quarto. O celular tocava e vibrava sobre a sua escrivaninha. Ainda um pouco atordoada, atendeu ao telefone e do outro lado da linha ouviu a voz de sua secretária dizendo que todos já estavam aguardando na sala de reuniões. Lavou o rosto, vestiu a primeira coisa que viu pela frente e saiu na rua com um sorriso que se escondia atrás da máscara. Andava com pressa, os problemas a esperavam, tudo como antes. Sempre fora feliz, mas só agora tinha certeza.

(10/06/09)


2 comentários:

Anônimo disse...

Puxa Cleopata, gostei muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito desse texto, como você conseguiu me fazer relfetir da minha infância e de tudo que já fizemos somente para agradar os adultos, quantos momentos de felicidade já deixamos de viver com intensidade por vergonha e preocupação de o que os outros vão pensar, enfim amei esse texto e a menina dos cabelos cacheados...

Beijos e muita inspiração!!!

Múmia

12 de janeiro de 2010 às 18:29
Babkas Brazil disse...

Múmia,
Eu acho que cada um de nós tem um pouco disso, uns demais e outros de menos. Estou no caminho de ter menos, cada vez menos o que tanto sufocava a protagonista. Quanto aos cachos, vão bem,obrigada!!!!! hehe
Danke

12 de janeiro de 2010 às 20:00

Postar um comentário